Guerra às drogas: discurso falacioso, método fracassado

Por Léo Miguel Endrigo Pommer*

Enquanto o legislativo evita o debate, o judiciário dá o primeiro passo para o avanço das normas que regulam o tema

A chamada “guerra às drogas” já provou sua ineficácia para combater o crime organizado. Ela só combate, na prática, a população pobre, negra e periférica que está na linha de tiro das sangrentas operações policiais realizadas pelo aparato repressor do Estado.

Essa “guerra” é um falacioso discurso de efeito midiático que alimenta o ódio de raça e de classe e que convence a classe média branca e acrítica de que a política racista e maniqueísta de extermínio é a solução para o mal atribuído ao tráfico de baixo escalão presente nas favelas. É uma ferramenta de propaganda política útil para manter a opinião pública distraída ao mesmo tempo em que justifica e naturaliza a mortandade seletiva de vidas humanas.

Os líderes da cúpula do narcotráfico não são atingidos por essas ações de repressão. Eles seguem incólumes e inalcançáveis em seus gabinetes, gerindo seus negócios sem maiores obstáculos, e isso não é casual. Explico.

Os grandes narcotraficantes formam uma elite econômica tão poderosa e influente como o são as outras elites econômicas, como a agrária, a religiosa, a rentista, etc. Além de possuírem forte representação no Congresso Nacional, essas elites são blindadas por complexas estruturas de poder estrategicamente capilarizadas dentro e fora das instituições.

As chacinas promovidas nas comunidades pobres pelas operações policiais são a expressão da barbárie, autorizada e perpetrada pelo próprio Estado. É um ciclo de violência que desumaniza e revitimiza as vítimas da própria exclusão social da qual o Estado é cúmplice e também autor.

Rodrigo Pacheco, atual presidente do Senado Federal, declarou que a decisão do STF que descriminaliza, dentro de certos critérios, o porte de drogas, é uma “invasão de competência”, ou seja, que o judiciário usurpou de uma competência do legislativo sobre o assunto, violando, assim, a chamada Teoria da Separação dos Poderes.

O que o judiciário fez, no plano concreto, foi simplesmente suprir uma lacuna existente na Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) e, no plano simbólico, sanar uma histórica omissão do poder legislativo, conservador e reacionário, refém das oligarquias, que se furta ao dever de legislar adequadamente sobre a matéria, a qual representa uma demanda social que exige do poder público uma resposta mais efetiva e também uma urgente atualização da lei penal.

De acordo com o Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, embora a citada lei tenha deixado de punir o porte de drogas para consumo próprio, ela não prevê critérios objetivos para distinção entre crime de tráfico e porte de drogas para uso pessoal, conferindo um excesso de discricionariedade aos órgãos encarregados pela persecução penal no enquadramento dos casos concretos. Segundo o ministro, essa distinção acaba sendo feita pelos agentes públicos com base na etnia, faixa de renda e local da apreensão, seguindo uma lógica discriminatória.

Enquanto o legislativo adia o aprofundamento do necessário debate público em torno do tema, o judiciário se esforça para corrigir judicialmente as inadequações da legislação vigente para garantir a salvaguarda dos direitos fundamentais. Esse é o papel da suprema corte de justiça: proteger o núcleo essencial dos direitos fundamentais e, com isso, garantir a efetividade da Constituição Federal.

Quando um poder da República fica inerte em seu dever de agir, o outro precisa equilibrar a balança da justiça, e é aí que entra em funcionamento o chamado Sistema de Freios e Contrapesos, o qual foi responsável, inclusive, por impedir um recente golpe institucional de Estado e por garantir a manutenção do Estado Democrático Constitucional de Direito no Brasil.

Além disso, o que o STF fez foi tão somente julgar, no exercício de sua função típica, um Recurso Extraordinário em sede de ação judicial movida pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em razão de um excesso punitivo decorrente de decisão judicial que condenou um homem por portar 3 gramas de maconha, uma decisão claramente desproporcional e desarrazoada.

Tal decisão do STF, como tantas outras, gera efeito erga omnes e vinculante, com repercussão geral. Nada novo debaixo do sol. Essa decisão, contudo, só gerou esse bafafá todo porque toca em algo muito caro para os conservadores que, por trás da cena, manipulam os membros do Congresso Nacional em favor de seus interesses. É só esse o motivo da celeuma.

O Congresso Nacional se dedica a promover guerra de poder com o judiciário quando deveria se preocupar em ajudar a interromper a sistemática violação de direitos humanos e fundamentais da população periférica. Enquanto o legislativo se ocupa de discutir formalidades processuais menores, o direito material que protege a vida e a dignidade humana é ignorado pelos parlamentares.
Ainda bem que temos o Supremo Tribunal Federal.

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*Léo Miguel Endrigo Pommer é pessoa trans, Bacharel em Direito, Educador Social, defensor dos direitos humanos e entusiasta da causa ambiental e animal

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